A capital paulista talvez tenha visto no domingo, dia 1º de abril, o maior espetáculo gerado por um show único de rock desde que os artistas internacionais chegaram ao Brasil para apresentações ao ar livre. Para um público de 70 mil pessoas no Estádio do Morumbi, o cantor britânico Roger Waters, ex-Pink Floyd, trouxe finalmente a turnê do megaclássico disco “The Wall” a São Paulo, proporcionando aos fãs um momento que eles jamais esquecerão e que será contado, por quem teve o privilégio de assistir, para filhos e netos no futuro.

Com uma estrutura impecável e planejada nos mínimos detalhes, o público foi presenteado durante quase duas horas e meia de evento com um show hipnotizante, repleto de luzes, efeitos sonoros e visuais de altíssima qualidade e, claro, com o bom e velho rock n’ roll de fundo. Na saída do Morumbi, muitos não tinham palavras para descrever o que haviam assistido, já que, de maneira incrível, todos ainda estavam em êxtase, tamanha a quantidade de informações que haviam captadas pelas suas mentes.

Antes do show, os fãs ansiosos já haviam lido as resenhas das ótimas apresentações de Roger Waters em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Muitos também lembravam que o ex-baixista do Pink Floyd tinha há pouco tempo lotado nada menos que 9 shows em Buenos Aires, quebrando um recorde que era dos Rolling Stones na Argentina em 1995, quando o grande grupo havia feito cinco shows consecutivos lotados.

Não existia dúvida alguma, portanto, que o evento em São Paulo não era algo comum. Se fôssemos comparar com o generoso cenário dos últimos três anos na cidade, o show de Roger Waters já havia ganho o status de grande evento roqueiro da temporada, de maneira idêntica às apresentações do AC/DC em 2009, de Paul McCartney em 2010 e do U2 em 2011, com sua 360º World Tour. Até então, por sinal, este último havia sido reconhecido por muitos como a mais espetacular experiência gerada por um show de rock na capital paulista.

Agendado oficialmente para as 19h30, a apresentação começou com quinze minutos de atraso, contrariando a tradição histórica dos ingleses de pontualidade. O set list já era conhecido por todos, já que Waters executa o álbum duplo “The Wall” na íntegra e na ordem exata das músicas.

A história do disco, lançado em 1979, é mais ou menos conhecida por aqueles que já ouviram falar em “The Wall”: um álbum conceitual que tem como tema central o personagem fictício Pink, baseado nada menos que em Waters. Assim como o baixista, Pink perdeu o pai morto na Segunda Guerra Mundial. Superprotegido pela mãe e oprimido pelas estruturas ultrapassadas da escola, ele constrói o tal muro em sua conciência para isolá-lo da sociedade opressora.

Apesar de ser uma obra da década de 70 e ter como uma das principais fontes de inspiração a atrocidade da Segunda Guerra lá na década de 40, “The Wall” é atualíssimo. Tudo porque algumas das críticas de Waters, que ataca as imposições do Estado em suas mais diversas formas, encontram alvos ainda na maioria dos países do mundo: em condutas políticas condenáveis, fanatismos religiosos absurdos, consumismos exacerbados e modelos econômicos perversos.

1ª parte

Após a breve introdução “I’m Spartacus”, a canção “In the Flesh?” é a primeira da noite e marca a subida de Waters ao palco. Logo de cara, o público já tem a noção do que vai ver e ouvir durante o show. Efeitos sonoros de alta qualidade, pirotecnia, sons de metralhadora e até um protótipo de avião que sai de uma das torres de iluminação das arquibancadas (muitos pensavam que ele viria de uma das torres da pista) e se choca com o palco (veja um vídeo que mostra este momento exato aqui), para delírio imediato de todos. O interessante é que antes do choque, o som do avião em voo razante dava a impressão de que realmente ele estava passando pelo estádio. Também não foi difícil comparar a cena com as do ataque às torres do World Trade Center em 11 de setembro de 2001.

Logo depois, ainda meio atordoado com aquilo tudo, o público viu a sequência do álbum, com “The Thin Ice”, “Another Brick in the Wall, Part 1” e “The Happiest Days of Our Lives”, todas com o início da aparição de fotos de vítimas de guerras nas laterais do muro ainda incompleto que se formava no palco. Destaque para “The Happiest…”, que traz, de maneira idêntica ao disco, o barulho do helicóptero e a bela parte instrumental marcada pelo baixo. Nela também aparece um boneco gigante que representa “The Teacher”.

É ele mesmo que vai ser o personagem principal da próxima música, nada menos que “Another Brick in the Wall, Part 2”, que é o maior símbolo da carreira do Pink Floyd e leva o Estádio do Morumbi inteirinho ao delírio, com o público cantando a plenos pulmões e mais um momento mágico do show.

“Hey! Teacher! Leave them kids alone!”, canta a plateia, ao mesmo tempo no qual vê as crianças do Instituto Baccarelli, de Heliópolis, ao lado de Waters, encenando uma disputa com o boneco gigante, numa imagem que dificilmente vai sair da mente de quem estava presente na apresentação. Interessante também que Roger, de maneira idêntica à que foi vista nos shows de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, homenageou, com uma foto no telão de fundo, o brasileiro Jean Charles de Menezes, morto pela polícia londrina em 2005, após ser confundido com um terrorista.

Após este grande momento, o ex-baixista do Pink Floyd cumprimentou a plateia, mostrando a gentileza de tentar falar em português: “Olá, São Paulo! Muito feliz de estar aqui”, disse, enquanto o público respondia, com o tradicional “Olê, olê, olê; Roger, Roger!”

Waters não se limitou a apenas saudar os fãs, já que agradeceu as crianças do Instituto Baccarelli e dedicou o show a Jean Charles, à família do brasileiro (“que luta por justiça”) e a “todas as outras vítimas do terrorismo de Estado em todo o mundo”.

Com a plateia ganha há tempos, o baixista pegou um violão preto e iniciou os acordes da clássica “Mother”, enquanto o muro em construção servia de telão para imagens do show inicialmente  projetadas em preto e branco e também com Roger Waters bem mais novo, dos tempos em que ele ainda era do Pink Floyd. Na sequência da música, mensagens na cor vermelha eram transmitidas no muro, enquanto uma imagem de uma grande câmera era projetada no telão redondo central.

Depois do verso “Mother, should I trust the government?” (“Mãe, eu devo acreditar no governo?”), que, como os outros versos, foi projetado no muro em letras garrafais, uma pichação apareceu logo em seguida com as respostas em português, “Nem fudendo”, de um lado, e, em inglês, “No Fucking Way”, do outro.

O show segue e o muro vai crescendo a cada minuto, com a colocação de tijolo por tijolo. A música seguinte é bela “Goodbye Blue Sky”, que traz inicialmente imagens no telão de pássaros voando e, depois, de aviões de guerra, que jogam bombas para baixo, todas em forma de logos de empresas marcantes do capitalismo, como a Shell e a Mercedes-Benz; símbolos clássicos religiosos, como a Estrela de Davi e algumas cruzes; e o símbolo do comunismo: a foice e o martelo.

“Empty Spaces”, “What Shall We Do Now?”, “Young Lust”, “One of My Turn” e “Don’t Leave Me Now” vêm na sequência, com um novo show de imagens projetados no muro cada vez mais alto. De flores a mulheres nuas, Roger Waters vai passando sua mensagem, cantando já em alguns momentos sem tocar instrumentos. O muro, já quase completo, vai ficando mais vezes na cor branca e com poucos buracos. É justamente por estes espaços vazios que o público consegue ver a banda.

Interessante notar que, com o muro quase todo montado, a plateia passa a ter um  megatelão. Em comprimento, ele consegue superar até o telão inacreditável do U2 na 360º Tour. São 137 metros de largura; 11 metros de altura e 5,5 metros de profundidade.

Com “Another Brick in the Wall, Part 3” e “The Last Few Bricks”, a primeira parte do show caminha para o final. Em “Goodbye Cruel World”, Roger Waters aparece cantando no único buraco presente que sobrou no muro. Ele mesmo encaixa o último bloco que faltava e seu ato encerra de vez a sensacional primeira parte do espetáculo.

Hora de intervalo, de 20 minutos, para a galera ir ao banheiro, comprar mais cerveja ou simplesmente conversar sobre a experiência inesquecível de “The Wall”. Na Pista Premium, onde também está localizada a imprensa cadastrada, várias pessoas aproveitam para tirar fotos com o muro branco de fundo, que contém diversas fotos de mortos nas várias guerras que machucaram o planeta.

2ª parte

Exatamente às 21h10, depois de os alto-falantes do estádio anunciarem para o público retomar o seu lugar, Roger Waters e banda iniciam a segunda parte do show. Com o muro tomando a frente do palco de maneira integral, a música “Hey You” é executada como toda a banda atrás dos 424 tijolos da incrível muralha.

Ao som de “Is There Anybody Out There?”, são retirados apenas dois blocos do muro para que Roger seja visto sendo acompanhado por um dos músicos do grupo. Em “Nobody Home”, o baixista volta a aparecer, desta vez numa espécie de sala de estar que sai de dentro da muralha. Lá, ele finge assistir a um programa de TV.

O show segue para um de seus momentos mais emocionantes com “Vera” e “Bring the Boys Back Home”, quando o muro inteiro volta a se transformar num megatelão repleto de vídeos que mostram soldados voltando para casa e a reação incrível de seus familiares, além de imagens de crianças maltratadas.

Com o público já emocionado, emendar a ultraclássica “Comfortably Numb” foi covardia! Com o muro em pé, Roger Waters cuida do trecho inicial para abrir caminho ao músico Robbie Wyckoff, no topo da muralha, fazer o papel que sempre foi de David Gilmour na época do Pink Floyd. Impossível não lembrar do guitarrista desde os vocais até o solo marcante do final da canção, que, no show,  é feito pelo músico Dave Kilminster.

Na sequência, a banda sai de trás do muro e improvisa um espaço na frente dele para tocar “The Show Must Go On”. Com uniforme militar e postura típica de ditadores, Roger Waters observa seus músicos darem um show à parte de melodia. O som mais calmo chega ao fim para a chegada dos fortes acordes da faixa “In the Flesh”, acompanhadas por imagens impactantes no megatelão. Acima do muro, aparece um porco voador inflável na cor preta que está pichado com várias mensagens, como a que diz que o “O Novo Código Florestal Vai Matar o Brasil” e que o “Brasil é um País laico”. Ao fim da canção, Waters ainda empunha uma metralhadora e atira na direção da plateia, que, naquele momento, está tentando detonar o porco preto que passa de mão em mão na pista premium e segue até a divisa com a pista comum durante a música “Run Like Hell”, que traz uma nova série de efeitos visuais incríveis no telão.

O show segue com “Waiting for the Worms” e a chuva de imagens sensacionais no telão simplesmente não para. A quantidade de informações é incrível e não há como não ficar hipnotizado com o desenho que traz a “marcha dos martelos” em passo de ganso, algo que virou praticamente um símbolo do filme “The Wall”, the Alan Parker, em 1982. O público completamente vidrado ainda vê Waters discursar empunhando um megafone como um ditador alucinado até a curta faixa “Stop”.

Eis que outro grande momento do espetáculo de aproxima com “The Trial”, no qual outros vários desenhos bizarros são projetados no megatelão, enquanto o público espera a queda do muro. “Tear down the wall!” (“Derrube o muro!”), grita Roger Waters, seguido pelos fãs no Morumbi. Na sequência, blocos começam a cair ao chão para novo delírio da plateia, numa cena que causa até um certo medo nas primeiras fileiras da pista premium, em virtude da muralha enorme que vai para o chão em segundos.

Com o muro destruído, o baixista e sua banda voltam ao palco, já com roupas mais simples e sem os trajes militares de antes. Depois de incentivar a galera para o tradicional grito “Olê, olê, olê, olê”, Roger Waters finaliza a apresentação com “Outside the Wall”, faz agradecimentos ao público e apresenta os músicos que o acompanharam brilhantemente durante o show.

As 70 mil pessoas presentes no Estádio do Morumbi saem extasiadas do local, cientes que testemunharam um grande acontecimento da música, talvez o mais importante deste ano no Brasil. Alguns até trazem pedaços dos blocos de papelão que formaram o muro. Ironicamente, o mesmo muro que chegou a dar prejuízo ao Pink Floyd na turnê do grupo com “The Wall” hoje é sucesso absoluto por onde passa e deixa outros megaespetáculos comendo poeira.

Atualmente, apenas o U2 teria condições de peitar Roger Waters numa superprodução. Com “The Wall” bombando por onde passa, o ex-Pink Floyd lança um desafio para os demais grupos e músicos, que terão de quebrar muito a cabeça para idealizar algo tão marcante quanto ao espetáculo que passou por São Paulo no primeiro dia de abril. Um show que o público presente jamais irá esquecer.

Para relembrar os grandes momentos do show, o Roque Reverso descolou vários vídeos no YouTube. Veja abaixo a abertura espetacular com “In the Flesh?”. Depois fique com um vídeo que traz “The Happiest Days of Our Lives” e “Another Brick in the Wall, Part 2”; e outro de 21 minutos que vai de “Mother” a “Young Lust”. Na sequência veja outro parte bela do show com “Nobody Home”, “Vera” e “Bring the Boys Back Home”; a emocionante “Comfortably Numb”; um vídeo de “Waiting for the Worms”; e outro com a queda do muro em “The Trial”.

Set list

Parte 1
In the Flesh?
The Thin Ice
Another Brick in the Wall, Part 1
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Part 2
Mother
Goodbye Blue Sky
Empty Spaces
What Shall We Do Now?
Young Lust
One of My Turn
Don’t Leave Me Now
Another Brick in the Wall, Part 3
The Last Few Bricks
Goodbye Cruel World

Parte 2
Hey You
Is There Anybody Out There?
Nobody Home
Vera
Bring the Boys Back Home
Comfortably Numb
The Show Must Go On
In the Flesh
Run Like Hell
Waiting for the Worms
Stop
The Trial
Outside the Wall