Assim como ’77 dez anos antes, 1987 foi simbólico para vários gêneros musicais e apontou tendências para as décadas seguintes; conheça os álbuns que contam essa história
Por Caio de Mello Martins*
Datas redondas sempre dão o que falar. É uma chance que temos para refletirmos sobre o legado histórico de eventos passados, e também para pensarmos no tempo presente, nos processos que se desencadearam até que chegássemos ao aqui-agora, analisando os significados inferidos nas escolhas que determinaram a história.
Quando o assunto é música, a efeméride que grita mais alto nesse ano de 2017 é, sem dúvida, a explosão do punk nos dois lados do Atlântico Norte, simbolizada pelos lançamentos fonográficos na Inglaterra que transformaram um influente movimento do underground norte-americano na principal corrente de cultura jovem globalizada.
De maneira geral, pode-se dizer que foi uma iniciativa legítima, de baixo para cima, que reivindicava o resgate da autenticidade e do lastro social na cultura popular. Opunha uma indústria fonográfica que ao longo da década ganhou muito poder sobre os meios de produção, distribuição e promoção; como resultado, bandas e gravadoras estavam cada vez mais submetidos à lógica mercadológica de massificar ídolos e clichês.
Isso foi a quarenta anos atrás, e muito já foi discutido como o punk agiu como um divisor de águas na cultura. O choque inicial do punk influenciou gravadoras a apostarem em novos artistas; além disso, sua proposta populista de “retorno às origens” e combate ao virtuosismo (solos e sintetizadores foram demonizados) inspirou jovens a saírem em busca de novos elementos que quebrassem com a monotonia desse impulso reacionário inicial, como os experimentos das vanguardas de início do Século XX ou estilos de música popular distintos do rock (o que explica o Third Wave Ska, o Art-Punk, o SynthPop, o Industrial, a World Music e outros estilos surgidos na transição entre os anos 1970 e 1980).
Mas o que podemos falar sobre os trintões do Pop? Cabe uma discussão sobre o legado de 1987 na música ou é mera falta de assunto? À primeira vista, não parece um ano muito distante. Uma rápida olhadela pelos sucessos que frequentaram o topo da Billboard naquele ano já mostra nomes que até hoje são familiares e lideram as listas de reproduções em rádios mundo afora.
Alguns já não estão mais entre nós (Whitney Houston, Michael Jackson, Prince, George Michael), mas muitos deles — Madonna, Phil Colins, U2, Bon Jovi, Guns N’ Roses — seguem enchendo arenas e ostentando algumas das maiores fortunas do mundo do entretenimento. Sem dúvida, 1987 foi mais um ano dominado pela MTV, penteados que desafiavam a gravidade e baladas grudentas, sem contar nos sintetizadores, sampleadores e sequenciadores que expressavam a obsessão de produtores pelo impacto imediato de um hit com batida perfeita, mas nenhuma alma.
Analisando bem, entretanto, 1987 também foi o ano de florescimento de movimentos culturais como o thrash metal e o Electronic Body Music (EBM), que produziram uma explosão de bandas não só no mundo anglo-saxão, mas também na Europa Continental e América Latina.
Foram movimentos que quebraram barreiras entre estilos musicais e também entre públicos rivais e mutuamente excludentes (como punks e headbangers nos Anos 1980). Irmãos de alma em campos completamente distintos, thrash e EBM botaram em marcha um rápido crescimento e desenvolvimento técnico.
Através de uma saudável competitividade entre bandas por níveis inalcançados de intensidade, velocidade, complexidade composicional e sordidez (no caso das letras), ambos os movimentos se distinguiram em poucos anos e tornaram obsoletos seus antigos mestres. Ainda que impregnados do impulso juvenil de chocar, thrash e EBM eram oásis de ceticismo e honestidade artística dentro de um deserto cultural de euforia escapista.
Foi também em 1987 que um movimento underground nascido das decadentes paisagens pós-industriais dos EUA ganharia o mundo. Assim como havia acontecido vinte anos antes com Jimi Hendrix, a House Music conquistou primeiro a Grã Bretanha para depois ser devidamente reconhecida na Terra do Tio Sam.
Inibidos pelo clima predominantemente abandonado e cinzento das ruas de Chicago e Detroit, DJs norte americanos romperam com as convenções musicais e as temáticas quase sempre melosas do R&B, buscando inspiração nas qualidades exóticas e hipnóticas de artistas de outras partes do mundo, como Europa e Japão, que apontavam para uma nova dance music anabolizada pela precisão milimétrica da batida eletrônica. Munidos não de instrumentos acústicos, mas de ferramentas de edição de som, esses DJs criaram um som que poderia ser descrito como uma destilação dos aspectos mais corpóreos da música pop.
Seus inserts vocais de todo o tipo e complexa alquimia rítmica apelavam exclusivamente para baladeiros de longas festas, as quais ocupavam espaços urbanos degradados para celebrar a batida como se não houvesse amanhã. A cultura rave nascia, e teria impacto sobre o estilo de vida de jovens do mundo todo, seus hábitos noturnos, sua sensibilidade musical, e o contato de muitos deles com novos tipos de drogas sintéticas.
É possível também fazer uma conexão direta entre 1987 e o próximo terremoto que iria remodelar as configurações do mapa do mainstream: o tal “movimento” grunge e a ressurreição do rock e do espírito sessentista por meio da sensibilidade lisérgica e da rebeldia introvertida do indie/college rock. Foi o ano em que Nirvana e Alice in Chains nasceram; mais importante que essa informação enciclopédica, um punhado de álbuns já mostrava como uma nova geração de músicos começava a reescrever o rock norte-americano.
A despeito do patrulhamento ideológico e da beligerância do punk hardcore, bandas como REM, Hüsker Dü e Dinosaur Jr se descolavam por não considerarem que letras subjetivas e composições melodiosas representassem “falhas morais” ou “concessões ao establishment” na sua proposta de música underground. Ao mesmo tempo, na mesma veia de ecletismo pós-moderno, o Faith No More sinalizava que era possível traduzir o peso não só via guitarras corrosivas, mas também pela fúria declamatória do rap e pela estridência das beats eletrônicas — uma mistura que seria crucial para as bases do que seria conhecido como nü metal na década seguinte.
Para descrever de modo mais claro o espírito de 1987 e as tendências que estavam em curso, separamos 11 álbuns que sintetizam a importância de 1987 na história da música:
Se você é headbanger, sabe muito bem que um dos anos mais prolíficos da história do heavy metal foi 1986. Praticamente todas as maiores bandas de thrash da época, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, lançaram obras que serviriam de guia para a evolução da música pesada nos anos seguintes. Uma delas no entanto demoraria um ano a mais para lançar sua obra prima, e que obra prima. O Anthrax era o maior representante do estilo na costa leste dos Estados Unidos. Nova-iorquinos do Queens de diferentes origens étnicas (a banda é 2/5 judia, 2/5 italiana e 1/5 indígena), souberam melhor do que outros calibrar o amálgama de influências culturais que informavam os jovens músicos de thrash daqueles tempos.
No álbum “Among The Living” (veja outra resenha dos 30 anos do disco aqui), o Anthrax acentuou o tom hardcore nos riffs. O ritmo com que a música flui tem um toque da malícia de quem lida diariamente com as tensões e os limites estabelecidos por gangues e guetos; os blasts de Charlie Benante e dos coros uníssonos (de gosto bem punk) parecem nos lembrar da brutalidade que marca a imersão do urbanóide pela massa heterogênea e impessoal da metrópole. Liricamente, a banda parece se importar menos em imitar seus próprios ídolos do que compartilhar conosco suas próprias referências em comics, cinema e ficção científica — motivo de orgulho ou não, fato é que são itens identitários fundamentais para estes cosmopolitas. Juntamente com o single “I’m The Man”, lançado no mesmo ano e que mostra a banda se aventurando em uma debochada mistura Rap-Metal, “Among The Living” sinalizou para os anos 1990 que o heavy metal não apenas habita fantasias adolescentes, mas também vive nas ruas.
Bon Jovi – “Slippery When Wet”
Originalmente lançado em 1986, “Slippery When Wet” foi um dos grandes hinos de 1987, em grande parte devido à força do single “Livin’ On a Prayer”, que ao lado de “Faith”, de George Michael, foi a música que mais tempo ocupou o topo da Billboard em 1987: quatro semanas em primeiro lugar. Bon Jovi já estava em seu segundo álbum e sua proposta não era exatamente inédita. Bandas de Hard Rock com tino para refrões grudentos e coreografias já pululavam aqui e ali no mainstream americano desde o final dos anos 70, e basicamente todos os clichês do estilo já haviam sido escritos por grupos como Mötley Crüe, Def Leppard, KISS, Quiet Riot etc.
É verdade, no entanto, que “Slippery When Wet” pode contabilizar como um de seus feitos ter sido responsável por integrar o público feminino no contingente de fãs de rock: tanto em forma quanto conteúdo, a banda mantinha táticas tão típicas (e sexistas) do estilo sob moderação, como insinuação sexual das letras, as cores genitais de roupas e maquiagens e as demonstrações fálicas de destreza técnica pelos instrumentos. Um approach light ao Hair Metal, calibrado graças à presença de Desmond Child, músico que colaborava com grandes gravadoras fornecendo hits infalíveis a seus artistas. Child foi contratado para trabalhar em um álbum que pudesse levar Bon Jovi ao estrelato.
Bem fiel ao zeitgeist da época — lembrem-se, estamos no auge da era neo-liberal individualista de Ronald Reagan e da promessa de grandes fortunas nas jogatinas de especulação financeira em Wall Street — a banda terceirizou sua atividade-fim em busca de maximização dos resultados. Outro aspecto que situa “Slippery When Wet” historicamente são os personagens que habitam suas letras, quase todos advindos da baixa classe média norte-americana achatada pela crescente desigualdade social. Pressionados por empregos de baixa qualificação e pelo crime organizado, serão enfim redimidos pelo otimismo, pela tenacidade e outras qualidades que o populismo à la Bruce Springsteen lista para exaltar o americano médio. É aí que a linha entre folclore popular e ufanismo se torna nebulosa.
Celtic Frost – “Into the Pandemonium”
Em 1987, os suíços do Celtic Frost precediam a onda hegemônica em fins dos anos 1990 de bandas que combinavam os blasts do death metal com intervalos sinfônicos e vocais femininos. Isso não parece nada provável vindo de uma das maiores forças por trás da difusão europeia do metal mais extremo, satânico e cru que se podia ouvir em meados dos anos 1980. Porém, com “Into The Pandemonium”, os arranjos orquestrais que já podiam ser ouvidos no LP antecessor eram apenas uma das inovações que grupo preparou para o álbum — a própria banda definia o novo estilo como “avant-garde metal”.
O vocalista/guitarrista/compositor Tom Warrior adotou um canto semelhante aos góticos do Christian Death, conferindo à morbidez do som uma nova dimensão. Liricamente, o álbum representou uma ruptura com o maniqueísmo das exaltações a Satã: o niilismo inerente ao Celtic Frost passou a ser melhor expresso por relatos de luxúria, ganância e fatalismo que marcaram a decadência de civilizações antigas — como se a música fosse o eco agourento do desmoronamento de antigas sociedades, agonizadas pelos mesmos lapsos que um dia arruinarão nossas próprias fundações.
Experimentos com fita, quartetos de corda e vozes operáticas de apoio foram alguns dos elementos que ajudaram a banda a traduzir de maneira fiel o tom grave e solene que se segue a eventos apocalípticos — algo que qualquer metaleiro vivendo em tempos de tensão nuclear da Guerra Fria gostaria de representar! A criatividade vertiginosa deste álbum ainda premiou a comunidade metaleira com dois sacrilégios que até hoje não foram esquecidos: uma track de break chamada “One In Their Pride”, em que figuram samples do astronauta Neil Armstrong na missão Apolo 11; a outra, “Tristesses de La Lune”, é uma declamação felina e sexy de um poema de Baudelaire com violinos inebriantes ao fundo. Sublime e inacreditável, “Into The Pandemonium” não poderia deixar de dividir plateias e cultivar seu diminuto punhado de fiéis seguidores — e não é o que grandes obras de arte fazem?
Dinosaur Jr. – “You’re Living All Over Me”
J Mascis se sobressaiu como um guitar hero em um meio conhecido por combater virtuosismos e solos. O líder do Dinosaur Jr revelou-se um verdadeiro discípulo do Television, curiosamente a banda responsável por transformar um muquifo decadente chamado CBGB no centro nevrálgico do punk em Nova York. Assim como os diálogos entre as guitarras de Tom Verlaine e Richard Lloyd, do Television, a base das músicas do Dinosaur Jr é construída por camadas de acordes, inversões, dedilhados e fraseados que desviam dos clichês e mantêm uma vívida dinâmica durante todo o tempo.
“You’re Living All Over Me”, o segundo álbum do grupo, antecipa em alguns anos o que ouviríamos das mãos de Kurt Cobain e Billy Corgan: tensão entre distorção suja e um cuidado com composição e melodia. E também anuncia o resgate da relação de prazer com a guitarra, solos longos, a apreciação pela beleza incerta do improviso, pelo calor na alma que um ruído de amplificador ainda provoca décadas após o rock ter nascido. Outro ar de inovação dentro do underground americano responsável por renovar o interesse de jovens roqueiros pela faceta dionisíaca do rock.
Faith No More – “Introduce Yourself”
No final dos anos 1980, quem acompanhava a cena underground do heavy metal tinha a impressão que não havia outro sentido para o estilo: as coisas só iriam ficar cada vez mais repulsivas, violentas, dissonantes e rápidas, estupidamente rápidas. Presos à essa perspectiva evolutiva, fãs do gênero olhavam com certo desdém para bandas como Rob Zombie, Nine Inch Nails e Jane’s Addiction no início dos anos 1990 — reunidas sob o rótulo “Alterna Metal” — e acusavam: “Isso não é Metal!!” Claro, nenhuma delas podia competir com o peso do que bandas como Death, Sepultura ou Morbid Angel faziam na época.
Elas nem tinham essa pretensão. A rivalidade surgia porque o “Alterna Metal” era esteticamente muito menos conservador e não se apresentava como um gênero de nicho. Nem por isso suas músicas não deixavam o ouvinte com aquela vontade irresistível de bater a cabeça — a diferença era que o peso era só mais um atributo de algo mais eclético e multidimensional. Talvez o primeiro álbum a exemplificar esse novo approach à música pesada tenha sido “Introduce Yourself”, o último LP do Faith No More a contar com Chuck Mosely nos vocais.
Não que o guitarrista Jim Martin fosse um coadjuvante na banda — sua pegada metal é parte crucial do som dos caras — mas a grande sacada do Faith No More está na cozinha. A bateria de Mike Bordin pega emprestado o groove da New Wave, os ritmos marcados do rap e a batida xamânica do Killing Joke para desenvolver um vocabulário todo próprio de percussão heavy, que também pode ser atribuída às pulsações e aos vigorosos slaps do baixo de Bob Gould, um dos poucos baixistas do Metal que pode se gabar de ser um protagonista.
Ouvindo o álbum, percebemos que o peso não se mede apenas por gritos, quantidade de riffs ou notas em um solo: o sutil e inteligente uso dos teclados ambientais de Roddy Bottum confere grande intensidade ao clímax das canções; mais importante, temos um vocalista que, se tecnicamente está muito abaixo do resto da banda, compensa com seu carisma como frontman. Não só Mosely era uma peça rara — um grandalhão de 2 metros com um moicano de dreadlocks — como também sabia contrapor bom humor ao som pesado da banda, adicionando sua peculiar modalidade de rap: avesso a auto-mistificações, preferia incidir cores beatnikianas sobre situações prosaicas. Ao mostrar que também o heavy metal poderia dialogar e construir pontes com estilos diversos para gerar novas expressões de cultura contemporânea e urbana, “Introduce Yourself” se revelou visionário.
Front 242 era o principal grupo de um movimento de bandas para as quais o componente conceitual era tão importante quanto a música. A vasta maioria dos artistas dentro do rótulo da Electronic Body Music era fortemente influenciada pelo construtivismo russo e propaganda soviética. Como base, bebiam daquela mesma estética que exaltava o progresso tecnológico e fetichizava a racionalidade com que o consumo, o transporte e a comunicação eram otimizados e automatizados.
Mas, é bom notar, os músicos de EBM não estavam interessados em produzir uma visão nostálgica do comunismo, e sim comentar sobre a sociedade que os criou, a capitalista — sua dependência tecnológica, sua obsessão por performance, sua tendência a objetificar pessoas, ideias e relações humanas, tudo isso inspira o ritmo mecânico em looping do EBM, que parece espelhar o contínuo ciclo de destruição e criação que o capital nos impõe.
Vanguardeiro, o EBM também se apropriava das próprias artimanhas de controle da civilização ocidental para veicular sua crítica: aproveitando-se do aperfeiçoamento das tecnologias de sampling, seus grupos puderam reproduzir nas músicas a sensação de sobrecarregamento dos sentidos a que estamos sujeitos pela exposição ininterrupta a todos os tipos de mídia, que vomitam manchetes, anúncios, pastores evangélicos, heróis, vilões, ninfetas, todos disputando nosso inconsciente e estilhaçando nossa percepção em mil pedaços.
Ora monótono e metódico; ora esquizofrênico e cacófono; porém sempre impiedoso com seus tímpanos — “Front by Front” é assim, amplamente considerado a obra-prima não só do Front 242, mas de todo o EBM. “Work 01”, “First In/ First Out” e “Welcome to Paradise” são ótimos exemplos de faixas incessantes de dança, contendo um trabalho arrasador de percussão eletrônica, que combinam vários inputs (gritos distorcidos, barulhos em mono, diálogos surrupiados em TVs) sem destruir a musicalidade do todo. É chover no molhado dizer que “Headhunter” é o grande momento do álbum, mas essa é daqueles hits que poderiam tranquilamente ganhar um remix de meia hora. Entre sintetizadores corrosivos, percussão sísmica, vozes reverberantes e talvez o melhor refrão da história do gênero Industrial, Jean-Luc De Meyer relata a história de um caçador de talentos e abusa do trocadilho para enfatizar sua natureza predatória — afinal, o lobo do homem é o próprio homem. Alguém duvida disso?
Não seria justo em 1987 tirar a coroa do Rei do Pop. Os números falam por si só. Com “Bad”, Michael Jackson vendeu 32 milhões de álbuns e emplacou cinco singles no topo das paradas. O detalhe, porém, é que “Bad” passou longe da marca de seu antecessor, nada menos que “Thriller”, o álbum que até hoje detém o recorde de vendas da indústria fonográfica com 65 milhões de cópias. Houve também quem considerasse “Bad” um álbum cheio de músicas inócuas e marcado pela produção irritantemente milimétrica de Quincy Jones.
Se por um lado Jackson começava a descrever uma curva descendente em sua carreira, por outro alguém pedia passagem ao inaugurar sua carreira mundial em grande estilo — George Michael. “Faith” abriu as portas para um sucesso que o britânico nunca havia experimentado: seis singles no Top 10 da Billboard e quatro semanas no número 1 com a música título — isso sem contar no dueto com Aretha Franklin “I Knew You Were Waiting (For Me)”.
Vender 25 milhões de cópias, como George Michael fez, no mesmo ano em que Michael Jackson, Prince e Madonna lançaram cada um seus discos não é para qualquer um. E “Faith” tem muitos méritos. A performance vocal dele é simplesmente estonteante, o cuidado que o cantor tem ao compor a melodia de cada verso é admirável. Aqui, ao contrário do affair decididamente frívolo do Wham!, George Michael arrisca seus voos sobre diferentes estilos, de electrobeat (“I Want Your Sex Pt 1”) a cool jazz (“Kissing a Fool”), passando por Gospel, Soul e SynthPop. “One More Try” era a menina dos olhos do falecido cantor, e dá para entender o porquê: George gravou nessa balada um de seus maiores tours de force. E o melhor: nessa época ele ainda parecia se divertir, percorrendo com habilidade a linha tênue entre mise-en-scène e exuberância — do jeitinho que o brega gosta. Depois disso, seriam mais três álbuns de uma produção errática e crescentemente esnobe cujo tom dominante era de clamor por credibilidade artística.
Guns N’ Roses – “Appetite for Destruction”
Destrutivo. Irresponsável. Ofensivo. São adjetivos que podem perfeitamente ser usados para descrever várias das primeiras estrelas do rock: Elvis, Jerry Lee Lewis, Chuck Berry eram grandes misóginos que viviam suas vidas e compunham suas músicas baseados na impetuosidade implacável de suas personas regadas a muita testosterona. Estes ícones fundadores do rock ganharam projeção graças aos seus egos incontroláveis, cuja força libidinal era caudalosa demais para as frágeis barragens da civilização ocidental do pós-guerra, careta e recatada.
Jovens há décadas se fascinam pelo rock por reconhecerem nele os monstros que habitam nossas profundezas: o desejo, a violência, o ódio, o poder. Por isso podemos dizer, sem medo de errar, que “Appetite For Destruction” (veja outra resenha do disco aqui) foi a última grande declaração do rock n’ roll, sem sutilezas ou recalques — e muito menos sofisticação.
Em músicas como “It’s So Easy”, “Night Train” e “Anything Goes”, não há medida para os delírios de sexo e drogas de Axl Rose. Não tem nada de sugestão ou sedução: ele vai submeter quem for à sua necessidade latejante por algo que possa inebriá-lo por algumas horas, até que o apetite se renove. Por outro lado, é um grande engano fechar os olhos para o lado animal do ser humano.
Ocasionalmente, Axl reflete sobre a futilidade de competir com outros milhões pelos sonhos de fama e dinheiro, e sobre a maneira fútil com que pessoas se corrompem apegando-se à ilusão de serem predestinadas à glória. Axl sabe do sacrifício que é jogar o jogo, mas aposta alto mesmo assim, como se sua vida não valesse nada. Esse niilismo e essa auto-rejeição são reforçados pelo rock n’ roll nada refinado tocado por Izzy, Slash, Duff e Steven, que ao misturarem a crueza dos Sex Pistols com várias referências do hard rock americano, produziram uma versão “farofa” daquilo que o Motörhead havia criado dez anos antes.
Entre o lançamento em 1987 e o início da escalada nas paradas, “Appetite for Destruction” levou mais de um ano. Quando o público o descobriu, o efeito foi explosivo, tanto é que “Appetite” é até hoje o álbum de estreia mais vendido da história. Guns N’ Roses foi a única banda de Hair Metal a sobreviver à onda grunge sem um arranhão, carregando apenas um álbum de inéditas debaixo do braço. Isso diz muito sobre seu caráter atemporal.
Por volta de 1987, o SynthPop já tinha praticamente morrido. Com a exceção de Depeche Mode e New Order, que ainda tinham alguma relevância para o público em geral, todas as outras bandas estavam agonizando. O impacto da sonoridade eletrônica e do visual extravagante e andrógino já havia se diluído completamente no caldo pop — o que chegou a motivar até mesmo uma reação contra a artificialidade da música arquitetada 100% por tecnologia de estúdio, com grupos como REM e The Smiths reconduzindo as guitarras para os holofotes e resgatando métodos tradicionais de composição.
Desacreditado, o SynthPop virou sinônimo de frivolidade. Antes uma interessante mistura de kraut rock, electro-disco e das radicais investigações de grandes figuras do experimentalismo setentista como Bowie, Eno, Robert Fripp e Ryuichi Sakamoto, o estilo degenerou para uma abominável apropriação e pasteurização de gêneros da cultura negra (reaggae, soul, funk) na forma de um produto pré-fabricado para ouvidos brancos. Por isso é tão interessante notar que em “Actually”, o segundo álbum do duo de SynthPop Pet Shop Boys, articula-se uma sonora crítica ao thatcherismo em voga na época.
Em vez de cantigas sobre paixonites descartáveis, Neil Tennant entoa canções que abordam questões que marcaram a época, como AIDS (“It Couldn’t Happen Here”), desemprego e guerra (“King’s Cross”), consumismo (“Shopping”), alienação e reificação (“Rent”). Muito à maneira do Soft Cell e (num parentesco mais remoto) Sparks, o tecladista Chris Lowe é especialista em criar aquelas grudentas melodias pop, embrulhadas em uma roupagem tão grosseiramente bombástica que é impossível não denunciar o truque.
No entanto, o grande talento de Lowe para sucessos de pistas adorna muito bem com a apatia da pequenina voz de Tennant. Sua pose de cronista desiludido da vida britânica confere sobriedade ao Pet Shop Boys; com tom anasalado, sua voz quase entabula uma conversa com o ouvinte (“Sprechsung”, como gostam de conceituar os alemães), chamando-lhe a atenção de que existem mensagens importantes sob os grooves. “Actually” propõe com sucesso uma nova saída para o eletrônico num contexto pop: imediatista e melodramático na forma, seu conteúdo reflete o materialismo e o individualismo que a desapegada persona de Tennant, resignadamente, reconhece em si mesma.
Steve ‘Silk Hurley’ – “Jack Your Body”
OK, não é um álbum, mas numa coletânea de 1987 não dá para não falar de House Music. “Jack Your Body” foi o primeiro sucesso a alçar o estilo ao topo das paradas britânicas. Steve ‘Silk’ Hurley, DJ de Chicago, seria o primeiro de vários artistas da House Music a fazer incursões entre os dez primeiros colocados, prenunciando uma nova força na cultura pop inglesa que seria conhecida como o 2º verão do amor — uma referência não só ao Summer Of Love californiano que marcou o auge da cultura hippie em 1967, mas também às primeiras raves que, nos próximos anos, tomariam conta de boates e galpões abandonados pelas maiores cidades inglesas afora — lugares que receberiam às vezes dezenas de milhares de pessoas e quantidades industriais da “droga do amor”, o Ecstasy.
Em um curioso intercâmbio cultural, DJs negros do rusty-belt americano, como o próprio Hurley e outros pioneiros da House/Techno (Frankie Knuckles, Juan Atkins, Derrick May etc), absorveram toda a sonoridade repetitiva e sintética de artistas europeus como Kraftwerk e Giorgio Moroder, misturaram com o funk viajandão do Parliament/Funkadelic e no processo criaram um “pidgin” musical por meio de ferramentas cada vez mais acessíveis de edição sonora, como os sintetizadores e sequenciadores da Roland, que possibilitavam criar faixas de dança ainda mais insistentes e hipnóticas.
“Jack Your Body”, com suas diferentes camadas de ritmos pré-programados, samplers recortados de vocais e sua linha de baixo composta via o analógico Roland TB-303, traz elementos musicais emblemáticos nesse novo passo da fase pós-disco da evolução da música de pista. A ressonância da House Music como fenômeno cultural em Londres e vários outros pontos da Europa (Ibiza, Ghent, Berlim) fez com que, em um segundo momento apenas, o som de Chicago crescesse em proeminência dentro de seu próprio país de origem, onde em questão de pouco tempo explodiu no epicentro da indústria do entretenimento globalizado — Los Angeles. Não por acaso, a Rainha do Pop se renderia em 1990 às batidas da House Music em seu álbum Vogue.
“The Joshua Tree” (veja mais uma resenha sobre o álbum aqui), o disco que alçou os irlandeses ao estrelato, já era o quinto do grupo, e o segundo produzido pelo mago dos estúdios Brian Eno. O single “Pride (In The Name Of Love)” foi um indicativo do que estava por vir. Primeiro sucesso a quebrar a barreira do Top 40 da Billboard, a música já refletia a colaboração da banda com Eno, que aprofundou e expandiu ainda mais a grandiloquência que sempre caracterizou a guitarra de The Edge e o fervor messiânico de Bono. Essa combinação sinérgica colheria os frutos em 1987, quando a banda emplacou o topo da Billboard duas vezes com “With Or Without You” e “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”.
É difícil explicar que o U2 era uma banda “alternativa” em 1987 para quem nasceu depois de 1990. Para estes, a lembrança mais remota da banda já remete às megaturnês do Zooropa, com produções monumentais de projeção e luz instaladas nos maiores estádios do mundo. À época o U2 era uma das poucas bandas a não integrar elementos eletrônicos no som e a ostentar uma formação instrumental tradicional. Não que a banda fosse roqueira no sentido clássico (ou baby boomer) do termo.
A guitarra de The Edge usava uma gama de pedais de efeitos e a banda raramente aludia à trindade hedonista “sexo, drogas e rock n’ roll”: muito pelo contrário, as letras de Bono, um católico devoto, denunciavam conflitos ideológicos e cisões sociais, clamando por paz e buscando refúgios de pureza na inocência da infância e no amor ungido pelo espírito. Por mais que a produção de Brian Eno tenha acentuado a mensagem de contemplação platônica do som do U2, o que chama a atenção na música é uma qualidade diametralmente oposta: a interpretação sexual de Bono nos vocais, ofegando, gemendo e vocalizando ao longo do álbum inteiro.
Paradoxalmente, foi com essa performance sedutora que Bono fez nascer a figura do rock star benevolente. Imbuído da “responsabilidade” de “dar o bom exemplo” e apoiar “causas justas”, está sempre em conflito com a vaidade que camufla com gestos e declarações altruístas, que no fim agem a serviço de sua própria vaidade lhe conferindo uma marca registrada. Não por acaso Eddie Vedder é um grande fã de “The Joshua Tree”.
Taí um ano realmente diferente e importante em termos de lançamentos.
Alguns dos meus preferidos da década estão aí!